São dois que escrevem. Ou são um? Ouçam um. Ouçam os dois. É para se ler com os ouvidos, mas nunca se esqueça: não se prenda às palavras.

12.24.2006

E o país cresce! (parte 2)

Tinha gente de todo jeito. Um casal apontou.

- Olha aquela chapadona ali causando de novo! Era uma mulher morena com os olhos vermelhos e caídos, parecia que tinha usado alguma coisa que não era água. E em grande quantidade. O casal se divertia com os "pitís" que ela dava. Mas não precisava estar quimicamente alterado para ficar revoltado com a situação que só piorava.

O ônibus das 22h partiu e logo encostou outro. O das 21h45!

Comentei com um rapaz muito branco, quase albino, que estava ao meu lado:

-Em vez de melhorar, só piora!

Era Antônio Carlos. Pai de dois filhos que estavam na pequena Tupã esperando por ele.

- Estou aqui na rodoviária desde às 4 da tarde!

O ônibus dele estava marcado para as 23h00, mas ele tinha vindo de Salvador, de avião, e por ironia do destino o vôo dele não atrasou.

O cara já se programa contando com o atraso dos aeroportos e acaba tendo que fazer hora (e quanta hora!) na Barra Funda.

Ele me contou que era engenheiro de uma empresa que fazia obras em todo o país.

- Já morei em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Tupã, Porto Alegre...

Era muito lugar, não me lembro de todos, mas o que importa é que o cara era um nômade.

- Olha, já peguei muito ônibus por esse Brasil, mas nunca vi tumulto parecido...

Daí pra frente prefirimos abstrair o tumulto e gastamos uns bons minutos falando sobre política, religião e futebol. Tudo aquilo que dizem que não se deve discutir.

No mundo do lado de fora de fora do terminal rodoviário da Barra Funda era mais de 1 hora da madrugada, mas ali dentro ainda eram dez e meia da noite.

Mais um ônibus encosta e, com a vista já cansada, Antônio Carlos cerra os olhos e grita:

- É o meu!

Eu achei que eu tivesse lido 22h45, mas ele reforçou:

- É o meu mesmo! 23h00 é o meu!

Apertou minha mão. - Foi um prazer, boa sorte! E saiu.
Pegou sua mala, pulou alguns obstáculos, chegou à porta do veículo e olhou pra trás novamente.

Decepcionado: - Não é o meu não!

Mas ele já estava longe para voltar. Na verdade não tão longe assim, apenas uns 4 metros, mas 4 metros ali, naquela hora, era uma distância incrível. E percorrer essa distância demandava um esforço igualmente incrível.

Foi aí que comecei a conversar com o Alexandre. 20 e poucos, pai de Jonatas (será que escreve assim?). No meio de toda aquela muvuca o cara carregava um tonél de 50 quilos de xampú.

Ele também ía pra Marília. O dele era o das 23h30.

-Tenho uma firma com meu cunhado. A gente lava estofado de automóveis, mas principalmente de ônibus.

Era um cara bem humilde. Devia passar a maior parte de seu tempo dentro dos ônibus e ali, naquele momento, tudo que mais queria era poder entrar em um.

Uma vez a cada dois meses ele tinha que ir de ônibus até Sampa para poder levar o tal xampú para Marília.

Perguntei se esse tal xampú tinha algo de especial. Ele me disse que não, que era igual a qualquer outro que a gente passa na cabeça. Fiquei sem entender o motivo pelo qual ele percorria mais de mil quilômetros de busão para conseguir o produto. Se fosse pelo preço, seria no mínimo estranho. Só de passagem de ônibus ele deve gastar uns 150 reais... Mas tudo bem, cada louco com a sua mania.

Ele me contou como funcionava o esquema, falou sobre as diversas etapas que eles tinham que cumprir para deixar o estofado limpinho, cheirosinho e o cliente satisfeitinho. Falou também sobre a dificuldade de, a cada viagem, ter que convencer o motorista do busão de que o que ele carregava não era inflamável.

- Se eu não levar esse produto, eu não posso trabalhar. Aí meu filho não come, eu não como, minha mulher não come, meu cunhado não come... Sabe como é né? Tem que se mexer, se eu ficar parado em casa, ninguém vai bater lá pra saber se eu tô precisando de alguma coisa, não é?

Concordei na hora: - Certeza.

Simples, porém sabias palavras.

Enquanto conversávamos o tempo passava e a paciência do povo ía se esgotando. Na plataforma 12 um ônibus estava parado a mais de uma hora e ninguém sabia direito o porquê. Por causa disso, uma fileira de ônibus que deveriam parar na plataforma 12 ia se aglomerando na entrada do terminal.

O pessoal ficou revoltado com razão. A gente podia ver os nossos ônibus parados, mas não podia embarcar. Era nítida a impressão de que havia mais gente e mais ônibus, do que o pobre terminal da Barra Funda podia agüentar.

Começou a gritaria. Um cara grande ficou revoltado, soltou uns palavrões e foi aplaudido pela gente, que no meio daquele caos ainda se divertia com a situação.

Aquela história de que o brasileiro tem o dom de rir da própria desgraça é a pura verdade.

- FIM DO SEGUNDO ATO -