São dois que escrevem. Ou são um? Ouçam um. Ouçam os dois. É para se ler com os ouvidos, mas nunca se esqueça: não se prenda às palavras.

3.23.2007

Magro etíope.

Durante quase toda a infância viveu no limite da magreza. Não que aquilo, para ele, fosse bem um problema. Era apenas um fato, um estado, uma normalidade. Magro como varetas, leve como folha seca. E entre as folhas verdes da densa floresta, um dia, sozinho, se perdeu. Empilhou horas e mais horas em uma busca pela saída e por esse mesmo motivo colecionou arranhões e feridas. Até que em uma tarde quente, quando sua magreza já quase o sucumbia, um clarão anunciou o fim da romaria.

Um outro povo, que nem mesmo falava sua língua, se surpreendeu com o menino que a todos sorria. Pouco a pouco, um a um foi convencendo e poucos foram aqueles que não o acolheram. Rodou de casa em casa, de caso em caso e, ao acaso, se acentou, se estabeleceu, se enraizou. Fez uma nova vida, novos amigos e até um avô. Era o velho do povoado, que sabios conselhos o daria. Mas foi em uma festança, em meio a uma conversa nada fria, que o sorriso de uma menina o despertou. Passou a pensar em sua outra vida, em sua família, em seu passado. Passou a passar horas assim.

Já não era mais magro, muito pelo contrário, era forte, era alto, era um exemplo para os mais jovens, quando um dia decidiu partir em busca da outra vida. Arranhões piores ainda colecionou, momentos tensos quase o fizeram voltar, mas de um jeito estranho ele reagiu, forçou, se empurrou pela mata e do outro lado saiu. Saiu diferente, diferenciado. Já não era nada forte, era novamente magro. Havia perdido tudo que havia acumulado. Os sonhos do lado de lá, agora estavam abandonados. Não sabia como voltar: nem ao peso ideal, nem ao povoado. Mas estava perto de casa, pertinho do lago. A sede era tanta e tão imensa, que antes de se reencontrar, parou para beber a água mansa da recompensa. O reflexo o surpreendeu. Da última vez que havia consigo se deparado, não estava tão arranhado, tão acabado. Porém, também não estava em seu natural estado.

Havia estado, durante um certo intervalo, em uma outra realidade, quase uma fantasia. Ele bateu, a porta se abriu. Uma criança nova se assustara. Era mais um irmão, o caçula, e muitas lágrimas dali rolaram. Voltou à magreza, à pobreza e à provável riqueza de estar de volta ao outro lado. Pro outro não mais voltaria e agora era assim: um dia após outro dia. Com o tempo até se acostumaria, mas nunca seria, nenhum dia, satisfeito por inteiro com o que poderia ter sido e jamais seria...