São dois que escrevem. Ou são um? Ouçam um. Ouçam os dois. É para se ler com os ouvidos, mas nunca se esqueça: não se prenda às palavras.

5.09.2007

Monge budista? Eu?

Na estreita estrada de mão dupla na região de Cotia, entre pequenos restaurantes e lojas de piscina, é quase impossível não notar a muralha que se estende por metros e metros. O portão eletrônico, com guarita e segurança, surpreende. Tudo devidamente explicado ao homem de terno azul escuro e acesso liberado. Pelo sinuoso caminho de asfalto, a impressão é de estar entrado em um resort cinco estrelas de arquitetura oriental. O Templo Budista Zu Lai é o maior da América Latina, só o terreno tem 150 mil metros quadrados. Tímida, fui à procura da monja Miao Shang, com quem havia falado (em português) por telefone, mas acabei encontrando uma monja oriental, que com português iniciante, me levou ao local onde monges praticavam o tai-chi matinal.

Se tudo me impressionava, também me causava certo incômodo. Respeitei as regras descritas no site quanto às roupas inadequadas, mas a minha regata branca causava desconforto frente ao traje monástico do dia-a-dia. Em uma quente manhã de fim de verão em tempos de aquecimento global, as seis mulheres monges, todas carecas, vestiam uma calça branca, parecida com uma ceroula, uma blusa igualmente branca embaixo de uma túnica marrom de manga comprida. Nos pés, meias brancas sob um sapato rasteiro. A essa altura, meu cabelo loiro e comprido e minhas unhas vermelhas já me faziam sentir a pessoa mais fora de contexto da humanidade. Tentando disfarçar o constrangimento, conversei com Miao Shang, e percebi que não me permitiriam vivenciar o cotidiano de um monge. Resignada, parti para o que um jornalista sabe fazer de melhor: a entrevista. Em vez de ser o outro, buscar entendê-lo e com sensibilidade, conhecer melhor sua história.

Miao Shang, minha anfitriã, foi generosa ao falar de si. A brasileira de pouco mais de 30 anos, engenheira química formada pela Politécnica da USP, abandonara tudo para, a contragosto da família, seguir a vida monástica. Era o porquê disso que, desde o surgimento da pauta, dias antes, eu desejava saber.
Por que você optou pela vida monástica?, perguntei enquanto escondia as unhas.
Foi um processo gradativo. A partir dos contatos que tive com a religião, me identifiquei. O que eu queria para minha vida? Pensava: eu posso casar, ter filhos, sogros. Será que meus sogros vão tratar meus filhos como eu quero? Todas aquelas preocupações mundanas. Não há nada de errado com isso. Mas achei que poderia ser mais útil. Li um livro do fundador do templo, Mestre Hsing Yün, que dizia: “aquele que é bem usado é que tem valor”. Cresci ouvindo para ter cuidado porque se aproveitariam de mim. Então passei para o bem, poderia ser usada para servir às pessoas.
Logo após essa reflexão já se tornou monge?
Não, depois de um tempo me desvinculei da religião. Era muita pressão de todos os lados e fui estudar engenharia. Trabalhei um tempo minha família se mudou para o Paraguai. Para você ver como são as coisas, lá acabei me reaproximando do budismo. Aí, senti que já havia feito minha parte e tomei para a minha vida a decisão de ser monge.
Sua família aceitou bem sua decisão?
Meus pais são budistas, mas não fervorosos. Para eles, não é uma opção normal se tornar monge. Hoje respeitam, mas não aceitam. A família se racha, uma parte apóia e outros não. Quando voltei a vê-los, já careca, ficaram praticamente em estado de choque.
Como fica a questão da vaidade?
Eu tinha o cabelo bem comprido, maior que o seu. Para mim foi um alívio. Antes tinha que me preocupar com tudo, que presilha usar, se a roupa vai combinar com o sapato. Os monges têm que raspar o cabelo para que, de cara, não haja distinção de sexo para não haver preconceito. E também porque não temos tempo a perder, 24 horas é pouco.
Como é o cotidiano de vocês?
Às seis horas é tocado o sino para acordarmos. Começa a cerimônia da manhã, em que recitamos mantras, sutras e fazemos meditação. Partimos em fila para o refeitório, para a cerimônia da refeição e depois fazemos o tai-chi (a meditação em movimento). Aí cada uma segue para sua função administrativa. Tem a parte de cerimonial, de atividades e cursos, de contabilidade. É difícil administrar um templo dessa dimensão sem ter déficit. Construí-lo já foi uma façanha, mantê-lo é uma luta. Paramos essas atividades para almoçar, onde cumprimos outro ritual. Voltamos ao trabalho à tarde e nos recolhemos ao anoitecer, depois que é tocado o tambor.

Entre uma xícara de chá e consultas a livros, Miao Shang me contou que o templo recebe 2 mil visitantes só aos domingos. Disse ainda que as outras cinco monjas do templo vieram de diferentes partes da Ásia, e que às terças e quintas fazem um curso de português para estrangeiros na FFLCH (Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP). “É preciso integrar-se a cultura do país em que você está”, afirmou. Prontamente, ofereci-me para acompanhá-las à aula. Perto das dez, era hora de despedir-me da brasileira e seguir as cinco asiáticas que entraram no Zafira preto rumo à Cidade Universitária. No caminho, tomada pela ansiedade ocidental, as ultrapassei. Perdi a entrada para a USP e acabei em um congestionamento. Já era tarde demais para ir à aula de português. É preciso equilíbrio para seguir o caminho certo. Percebi então que, por um breve momento, ao perder o caminho traçado, havia mergulhado naquele universo.

2 Comments:

Blogger Link-Smokecoffee said...

Você escreve muito bem, parabéns!

8:22 da tarde

 
Anonymous Okashi San said...

A Mestra Miao Shang é o que eu posso chamar de mestra de verdade. Ela é demais !^_^"

Omituo fo!

11:22 da manhã

 

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