São dois que escrevem. Ou são um? Ouçam um. Ouçam os dois. É para se ler com os ouvidos, mas nunca se esqueça: não se prenda às palavras.

4.11.2007

Mais sobre a China

Impossível conseguir manter-se à parte dos acelerados acontecimentos na China. No bate-papo a seguir com a jornalista Sônia Bridi, correspondente da TV Globo no país durante dois anos, é possível conhecer o gigante que estampa páginas de economia e política sob a perspectiva de quem viveu tudo de perto, com uma interessante visão social.

Sociedade
O povo chinês é mais parecido com a gente, os brasileiros, do que com os japoneses. Os japoneses são bastante reservados, falam baixo, são formais. Os chineses são barulhentos, simpáticos, adoram fazer farra e puxar assunto com estranhos. São curiosíssimos, sempre que gravávamos nas ruas de Pequim aparecia alguém enfiando a cara na frente da lente para ver o que tinha ali.

Os chineses trocam muito pouco afeto entre eles – pode ser uma forma de proteção. Minha tradutora no país, a Sheryl, conta que já era adolescente quando sua mãe segurou em sua mão pela primeira vez. Para ela, foi um momento de estranhamento incrível. A partir daí, dá para imaginar as feridas afetivas que esse país tem para curar.

"Chinês não dá abraço". Foi o que ouvi de minha empregada chinesa, a Wang, que fez uma cara esquisita quando me viu abraçando minha sobrinha. Na hora brincamos e fomos todos abraçá-la. Sabe o que aconteceu? Cada vez que eu chegava em casa e abria a porta, lá estava Wang parada, parecendo um Cristo Redentor, esperando a gente para ganhar abraço. Ela ficou viciada!

Jornalismo
É difícil ser um jornalista na China para qualquer um. O país tem o controle absoluto de todo o conteúdo publicado, há censura da fonte e censura na Internet, proibindo acesso à wikipédia e a blogs, por exemplo. Para fazer uma matéria sobre mina de carvão, negociamos 11 meses e quando finalmente, com a autorização em mãos, viajamos mais de doze horas até o local, pudemos ficar lá por apenas 20 minutos. Não vi trabalhadores e nem um pedaço de carvão. Acabei fazendo a matéria sobre como não consegui fazer a matéria.

Mulheres
A mulher chinesa conseguiu muitos avanços, principalmente se comparadas às dos outros países da Ásia. Uma das metas da revolução comunista era promover a igualdade entre homens e mulheres. É um processo lento, mas o governo chinês tem muitas políticas de integração da mulher. Mesmo assim, existem milhões de mulheres chinesas que gostariam de se divorciar, mas não o fazem. Isso porque na separação é o pai quem fica com o filho e a mãe não tem nenhum direito à guarda da criança. É uma contradição, pois hoje elas são mulheres que trabalham e têm altos cargos e ao mesmo tempo, a lei chinesa diz que o filho pertence ao homem.

A minha tradutora, a chinesa Hu Hua, que adotou o nome inglês Sheryl, tem 29 anos e sua família é de uma minoria étnica, o povo yi, da província de Yunnan. A avó dela, quando criança viu a mãe, o pai e os irmão sendo mortos em uma guerra interna por terras chinesas. Então, cresceu uma pessoa amarga e casou-se. Alguns anos depois veio a revolução e novamente perdeu tudo o que tinha. Aos 4 anos, a Sheryl teve que ir morar com a avó em Pequim, para que os pais pudessem trabalhar no campo. Ela sofreu muito convivendo com a senhora amargurada, que entre outras coisas, já tinha o próprio caixão guardado na cozinha para quando moresse. Aos 4 anos de idade, Sheryl fazia as refeições olhando para um caixão. A avó era uma pessoa tão ruim para ela, que ela conta que esperava o momento que o caixão fosse usado.

É incrível perceber como as velhinhas chinesas dos pés enfaixados, mesmo com uma história de vida duríssima, conseguem manter o bom humor. Foram mulheres que tiveram seus pés atrofiados quando jovens porque, segundo a tradição, pés pequenos eram sinal de beleza. Elas sofreram de dor e posteriormente sofreram com a perseguição na revolução comunista. Para os revolucionários, elas eram o símbolo das coisas velhas: foram humilhadas, tinham que usar sapatos imensos e mal conseguiam parar em pé. Depois ainda tiveram que ganhar a vida trabalhando duro na lavoura em cima daqueles pezinhos atrofiados. Ainda assim, hoje aos 90 anos, uma vez por semana elas se reúnem em um centro cultural onde cozinham, dançam e contam suas histórias com vontade de contar.

Ocidente
Meus traços diferentes ainda chamam atenção no país. Bastava ir a algum lugar em que havia turistas – com o enriquecimento do país, muita gente do interior vai para a Cidade Proibida, a Muralha, o zoológico – não conseguíamos fazer nada, ficávamos parando para tirar foto, como se fossemos celebridades. No zoológico, os chineses só queriam saber de tirar foto comigo e com o meu filho que têm os olhos bem claros. Em Taiwan, uma velhinha colocou o dedo dentro do meu olho. Ela nunca tinha visto uma pessoa de olhos claros. Ela chegou, ficou me olhando fixamente, e de repente... pôs o dedo para ver como era.

Mandarim
O mandarim é uma língua difícil, aprendi apenas o básico. É uma idioma comercialmente importante e é muito mais fácil entender a cultura chinesa se você entender a língua. A construção das palavras diz muito do que a cultura pensa. Por exemplo, a palavra hao, que quer dizer bom, na escrita chinesa é representada por dois caracteres: a mulher e o filho homem.

Crescimento
Consegui ver durante dois anos o crescimento vertiginoso do país. Prédios saindo do nada e virando grandes centros e pessoas todos os dias saindo da pobreza e entrando numa vida de classe média baixa.

A China está crescendo, mas ao mesmo tempo a Europa e os estados Unidos também estão trabalhando para solidificar seu poder de influência em outras partes do planeta. Com o crescimento da China, o que pode acontecer, é mais ou menos uma reedição da Guerra Fria, ou seja, existe um poder que se contrapõe ao poder dos americanos. O questionável, é a qualidade desse poder da China – é bom ou é ruim para a humanidade? Quando pensamos que os chineses impedem a ação da ONU em Darfur porque eles dependem do óleo sudanês, essa força é ruim. Mas em outros casos, esse poder é interessante.

Pessoal
Trabalhar ao lado do marido nesse desafio profissional torna tudo mais fácil. É uma felicidade termos trabalhos que se complementam. Afinal, a adaptação em outro país é difícil. Nosso filho chegou na China com três anos e sofreu. Eu chegava na escola e ele estava lá brincando sozinho, sozinho. Tinha dias que dava vontade de sentar em um canto e chorar. Mas valeu a pena, ele saiu de lá integrado e até queria deixar crescer uma trancinha no cabelo como os coleguinhas. Mas quando eu falei que iríamos mudar para Paris ele mudou de idéia. "Lá eles não usam, né mamãe?"

Lição
Como povo brasileiro podemos aprender com os chineses a pensar em um prazo maior, a pensar que ás vezes é preciso que uma geração faça um sacrifício para que as gerações futuras possam se beneficiar. Como podemos pensar que podemos manter gente se aposentando com 50 anos em uma previdência quebrada? Isso fará falta para os nossos filhos. Isso significa um governo criando um déficit cada vez maior, com dívidas cada vez maiores, com menos capacidade de investimento, menor capacidade de crescimento econômico. E em um país sem crescimento econômico, faltarão oportunidades para os nossos filhos. Precisamos definir coisas para o nosso país, pensando que daqui a 20 anos as crianças serão adultos. Muitos países estão conseguindo dar a virada. A Ásia inteira está conseguindo se superar. E porque justo nós brasileiros, tão inteligentes e criativos, não conseguimos sair disso.


*Íntegra da entrevista feita por mim e publicada em abril de 2007. Sônia Bridi morou na China junto com o marido, o repórter cinematográfico Paulo Zero, e com o filho Pedro, hoje com 5 anos. Há um mês é correspondente da Globo em Paris.

4.08.2007

Para expressar

Raiva da raiva
Ternura por si
Amor por aquilo
Ódio de ti

Feliz de quem sabe
Louco em vão
Um grito retido
Bocado de não

Risada de gente
Sofrido secreto
Palavra ofuscada
Olhar indiscreto

Deitado na lama
Jurar entender
Vontade da voz
Sentido do ser